UM CORPO DENTRO DE UM CORPO DENTRO DE UM CORPO DENTRO DE

 

Acho que a gente se perdeu no caminho, sabe. 

Acho que chegamos na descoberta de que não nos reconhecemos, não reconhecemos nossa história, nossa calmaria, as coisas que podem brilhar frente aos nossos olhos.

Quando olho no espelho vejo um luto. E há tantos desses!

A última vez que o céu estava cinza e eu estava aqui, escrevendo de frente pra janela, eu falava de um luto. O luto de tantos, de muitos que carrego em mim.

Perceber. Perceber que eu morro todas as vezes, mas não admito, e carrego meu corpo morto dentro de um espaço que não se reconhece.

Às vezes me dizem que existem coisas boas na vida, carregar a morte é uma delas?

Veja, o sol aparece quando pensamos no outro. Mas e quando pensamos em nós?

Carrego muitas coisas, muitas coisas.

Eu gostava de cantar e de olhar a chuva. Eu gostava de sonhar. Se uma pessoa que está me conhecendo pergunta do que eu gosto, eu esvazio.

Começamos a caminhar o caminho do outro, sabe, daquele que nem existe.

Quando eu tinha doze anos, jogava paciência no computador toda manhã. Sempre passava um carro que vendia produtos de limpeza e ele sempre tocava uma música instrumental de abertura às vendas. Eu gostava muito daquela música. Foi meu vô quem me ensinou a jogar baralho. Ele gostava de sentar na sua poltrona e ficar em silêncio, de olhos fechados. Eu também gosto de fechar os olhos. Quando eu tinha doze anos, meu vô morreu.

Carrego muitos corpos mortos dentro de mim, sabe, é inevitável. Vou juntando todos eles e guardando em caixinhas de madeira. Como material orgânico, a madeira apodrece, mofa, se desfaz. Então visto todos aqueles corpos mortos como uma segunda, terceira, quarta pele, e quando olho no espelho…

Existiu caminho alguma vez?

A possibilidade de gostar de alguém, de gostar de algo, de gostar, ou apenas a sensação de uma vida que não tem formato, que não tem chão.

Um corpo que flui e se molda dentro de carcaças. Meu corpo dentro do meu corpo morto dentro de peles em deterioração. 

Um presente.

É difícil não falar em símbolos, sabe, e de vez em quando esquecer de algum detalhe, mesmo que não esqueça, e tentar organizar as subdivisões internas, mas só tentar. Tentar identificar onde um corpo termina e começa o outro, onde a morte é do eu e onde a morte é do outro eu. 

Se cria uma microtragédia a cada vez que nos perdemos, a cada corpo que se solta. As possibilidades, mesmo que inventadas, escorrem das mãos e, tentando segurar o que nem era tão certo assim, ficamos com o vazio.

O que existe dentro do corpo dentro do corpo dentro do corpo dentro de tudo?

Todo ano florescia uma flor exótica no quintal. Parecia uma dália de cor rosa intensa, com suas muitas pétalas que se enrolavam em si mesmas. Mas não era uma dália. E ela nascia mesmo quando a soterravam com troncos e galhos e mato arrancado. Ela renascia, mesmo quando alguém pisava em seu caule sem saber de sua presença, ou mesmo sabendo. Mesmo quando o mato em volta crescia tanto a ponto de bloquear a chegada do sol, a flor exótica surgia; ano após ano, sua cor intensa contrastava ante o resto do verde. Mas então eu parei de ir até o quintal.

Acho que a gente se perdeu no caminho, sabe.


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