É PERIGOSO ESCREVER ALEGRIAS

 

Escrever sobre o passado é tão perigoso quanto escrever alegrias.


Não faz muito tempo, me inscrevi para participar de uma roda de leitura de poesia. Na foto de divulgação aparecia ninguém menos que Cecília Meireles, minha poeta preferida. Mal sabia eu que uma foto nunca é só uma foto. Aquela era a primeira vez que eu participava de algo assim: não sabia o que esperar; cada pessoa inscrita teria que ler um poema de sua preferência, ou só iríamos escutar a mediadora da roda? Em todo caso, selecionei alguns poemas para não passar vergonha.


Descobri depois que Cecília nada tinha que ver com as leituras: encontrei o primeiro engano. Terminada a roda, vi meu corpo fragmentado voltando ao passado, à quando a gente ainda tinha contato com as pessoas, ou pelo menos achávamos que tinha.


Fui até meus oito anos de idade, numa comemoração da escola de dia das crianças ou final de ano, não sei ao certo. Estávamos fazendo amigo-secreto entre a turma.


Todas as minhas colegas estavam sendo reveladas e presenteadas quando percebi que quem tirou o papelzinho com meu nome havia faltado. Era o único faltante, o Heirich. Naquele momento, as únicas coisas que me passaram pela cabeça foram o choro e o ódio do menino por não saber o que me comprar e preferir a covardia da ausência, escondendo assim sua culpa.


Hoje entendo que, provavelmente, sua família não tinha dinheiro para comprar presentinhos insignificantes para o amigo-secreto da escola. Só que ninguém me contou isso aos oito anos e o ódio pelo menino já tinha se criado. Ódio infantil, é claro, daqueles que duram uma hora, no máximo.


Eu tinha sido a única a ficar com as mãos vazias.


Minha surpresa ao final daquela tarde foi ver a professora chegar com um pacote grande e o dar para mim, dizendo: “feliz dia das crianças!” ou “feliz natal!”. Ela tinha ido ao mercadinho perto da escola, na hora do recreio, para comprar meu presente de amigo-secreto. Era uma boneca e embora eu nunca tenha gostado de bonecas, fiquei encantada com a preocupação que a professora teve por mim. Não parava de me gabar com o presente, dizendo para todo mundo: foi a professora que me deu.


Nunca vou me esquecer dela. A professora Shirley também foi a primeira pessoa a incentivar minha escrita: sempre lia para toda a turma os versinhos que eu escrevia e lhe entregava. Versinhos estes, inspirados nos poemas de Cecília.


Volto ao hoje com a consciência de que escrever sobre o passado e alegrias é perigoso porque nos lembra de que pequenos gestos de empatia já não existem quando nos tornamos adultos.


Comentários

  1. Adorei a crônica. Memórias de infância sempre me encantam.
    Ainda estou na dúvida sobre criar ou não um blog para os meus textos. Quem sabe não me inspiro em vc ��

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    Respostas
    1. Foi tudo ideia da Mylle hehe.
      Eu já tinha esse projeto do blog em mente desde o ano passado, mas fiquei mastigando ele por todo esse tempo (não sou muito adepta a tecnologias digitais).
      Postava alguns textos no instagram, mas percebia que sempre era engolida pelas postagens-caça-níquel.
      Me sinto mais tranquila por ter um espaço só pras minhas publicações.
      E além do mais, quem vem até aqui é porque está realmente interessade no meu trabalho :)

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