NUNCA ESCUTEI UMA MÚSICA SALVADOREÑA


        Nas minhas típicas crises de ansiedade dos finais de semana, a única coisa que me acalma é cantar bem alto músicas latinas.

Quase na hora do almoço do sábado, coloco para tocar uma playlist de uma nova banda de Bogotá que está fazendo muito sucesso entre os hispanohablantes. Enquanto guardo a louça seca do dia anterior, o ritmo latino toma conta do meu corpo e quando percebo, minha performance está em seu auge, percorrendo a casa toda.


Tenho uma certa paixão pela cultura latino-americana. Não é à toa que passei quatro anos estudando formalmente a língua espanhola. Eu sempre tive oportunidade de conversar com intercambistas na universidade. 


Conheci uma garota de Costa Rica no banheiro: ela tentava, de um jeito impossível, perguntar onde tinha papel (coisa rara na universidade pública).


A partir dela, conheci duas mexicanas e um salvadoreño, que logo me levaram a um grupo de sete pessoas da América Latina. Era bonito ouvir a gente conversando.  Eu não entendia muito do que falavam: cada um com um sotaque diferente e cheios de regionalismo — bem oposto ao espanhol padrão que eu estudava — mas ainda assim, era bonito ver a minha tentativa de socializar, ou engraçado.


Quando os horários coincidiam em dias de semana letivo, sempre almoçávamos no restaurante universitário, cada qual levando seus próprios temperos para dar sabor de casa à comida.


Aos poucos, fui entendendo as gírias, as expressões de linguagem, os sotaques e, principalmente, os palavrões e os significados ambíguos do espanhol. Tenho lembranças perturbadoras com esse último. 


Uma vez, quando saía do prédio no final da tarde, encontrei meu grupo bebendo na calçada em frente a uma das lanchonetes que rodeiam a reitoria. Me chamaram para participar da conversa. Estavam um pouco bêbados, pude perceber, e o assunto a que tão fervorosamente era debatido já chegava quase ao fim. Estava um pouco perdida no que diziam e para entrar na roda, acabei soltando: 


Creo que Argentino es quien más coge durante el día.


O argentino, ao ouvir minha blasfêmia, cuspiu toda a cerveja que tinha na boca nas costas de uma mulher que passava:


¿QUÉ?


 Os hermanos se curvaram quase até o chão de tanto que riam.


Quem mais passava tempo comigo era Oscar, o salvadoreño. Sempre tinha tempo para ajudar na minha conversação. Oscar tinha uma imensa dificuldade em pronunciar as palavras na minha língua, dificuldade que nenhum dos outros latinos tinha, o que me levava a pensar se o tempo passado em minha companhia não era o mesmo das suas aulas. Isso ou ele realmente tinha problemas para aprender um novo idioma.


Oscar era um cara bem quieto e reservado. Me escutava falar mais do que contava alguma coisa da sua vida e principalmente da sua vida em El Salvador. Era ótimo eu falar bastante, mas me incomodava nunca ser corrigida e de não ouvir as particularidades da sua fala, já que meu objetivo era melhorar meu espanhol.


Natalia, a garota costarriquenha, me dizia:


¿Qué te parece Oscar? Lo veo siempre hablando de ti.


Um dia, Oscar me convidou para ir a um churrasco que sua turma de mestrado iria fazer. Lhe disse que não comia carne e que me sentiria mal por estar em um ambiente completamente fora da minha zona de conforto, afinal, eu era de humanas e ele de exatas. O que eu queria mesmo era um tempo do salvadoreño: com tantos encontros e tanta disponibilidade de estar comigo, estava começando a me sentir sufocada. 


Logo que terminou de ouvir minhas desculpas, afirmou que tinha convidado todos os intercambistas que eu conhecera, e mais alguns que acabaram de chegar no país, e que haveria opção vegetariana para o almoço. Me senti encurralada e aceitei o convite, por fim. Que mal teria de ir a um churrasco com opção veggie, cheio de pessoas interessantes para se conhecer, inclusive as de matemática? O local da comilança seria no campus onde o setor de biológicas e exatas se encontra, ou seja, bem afastado do centro onde eu vivia e estudava. Que mal poderia acontecer?


Oscar me esperava no ponto de ônibus quando cheguei. Fomos atravessando o campus vazio de um sábado não letivo, era a primeira vez que eu entrava ali. Ele me guiava, me afastando cada vez mais dos prédios de aula. De vez em quando me apontava alguma sala e nomeava o laboratório. Esse espaço era muito maior do que o do centro, e mais parecia uma cidade cercada por árvores do que parte da universidade. Eu não via mais ninguém além de nós naquele lugar. Andamos no gramado por uns seis minutos até eu conseguir avistar uma casinha. Era para lá que me levava.


Oscar não falava muito, como de costume; e olhava fixamente para aquele amontoado de tijolos. Eu tentava, com desespero, puxar assunto e desviar a atenção de algo que suspeitava acontecer.


— Que horas mesmo vai começar o almoço? — O nervosismo travava meu espanhol.


A las doce y treinta.


— E tem certeza de que vai ter opção vegetariana? Eu comi bem no café da manhã, mas não vou aguentar ficar a tarde inteira sem nada no estômago.


Sí.


— É bem verde aqui, cheio de árvores, bem diferente do centro...


— ...


— E bem isolado também…


Sabe quando seu alarme interno é ativado frente a uma situação de perigo iminente? O meu já estava quase chamando os bombeiros. Que lugar mais estranho era aquele que Oscar me levava? Comecei a ficar enjoada, suar frio e sentia que minhas pernas iriam perder a rigidez a qualquer momento.


Assim que entramos, percebi que era ali que estava acontecendo o churrasco. Oscar me apresentou a seus poucos colegas brasileiros e eles foram bem simpáticos comigo. Perguntei dos outros intercambistas e ele logo se apressou a dizer que não viriam, desconfiei de que nem ao menos tinham sido convidados.


Oscar estava um tanto estranho durante o almoço, estava agitado, como se esperasse alguma coisa com pressa. 


¿Por qué miras tanto a la hora? ¿Necesitas estar en otro lugar? — Era eu quem deveria estar cuidando do relógio; queria saber como ir embora sem ser mal-educada, minha ansiedade inicial tinha feito eu perder todas as energias do dia.


No, no es nada. Solo estoy marcando algo.


— ¿Algo de la comida?


Sí… pero, no. Es algo sin importancia… bueno, es importante, pero no es nada...


Assim que terminei a sobremesa, Oscar olhou bem para mim e começou a sorrir sem mostrar os dentes. E ficou assim, por um bom tempo. Eu só conseguia pensar: gente, o que deu nele? Será que tinha cheirado alguma coisa? Mas Oscar não era disso. Um pouco antes se mostrava incomodado com a minha presença e então, de repente, me olha como se estivesse deslumbrado com minha recente aparição.


¿Por qué estás sonriendo?


No es nada.


O som que tocava no ambiente teve seu volume aumentado e percebi que uma música em espanhol começou a tocar:


— Eu conheço essa banda, é Morat, não é?


 Oscar enfim mostrou os dentes, no sorriso, quero dizer, ele sorriu com os dentes à mostra. Mi Vida Entera era o nome da música.



Não respondi mais as suas mensagens depois daquele dia, também não atendi mais suas ligações. Evitei o restaurante universitário para não haver encontros repentinos, e cortei qualquer contato com os outros latinos que tínhamos conhecido. Fugi de todas as formas possíveis de Oscar, e algumas um tanto impossíveis. Na época, não sabia o que dizer. Não que agora saiba, mas depois de um tanto de anos, a gente cria um pouco mais de consciência de certas situações.


A última vez que nos vimos foi um mês depois do churrasco, na entrada do prédio onde eu estudava. Ele passava por ali — provavelmente a resolver algum assunto na reitoria; isso ou estava me seguindo — e quando me viu conversando com um amigo brasileiro, e percebeu que eu o vira, seu rosto começou a ficar vermelho e apressou o passo.


Nunca mais soube de Oscar. Deve ter voltado para El Salvador. Não que isso fizesse diferença agora, afinal, já se passaram oito anos.


Na minha longa lista de cantantes e bandas da América Latina, nunca sobrou espaço para este pequeno país onde a temperatura nunca muda, onde os habitantes só veem a chegada do inverno porque chove.


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