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A REALIDADE PELA FICÇÃO

Eu me identifiquei muito com Charlie Gordon. Engraçado de um jeito peculiar. As pessoas que leram Flores para Algernon também se identificaram? Vi alguns comentários dizendo que o livro não é bom, que só faz os leitores sentirem pena de pessoas com deficiência intelectual. Discordo completamente. Analisando a parte da escrita, senti que o ritmo não se mantém o mesmo do início ao fim. A leitura ficou um pouco mais lenta pela metade da história, se recuperando no final, mas fora isso, não encontro motivos para a crítica. Quanto ao conteúdo, me vejo em processo de absorção e entendimento ainda, mesmo tendo terminado o livro há três dias. Quando eu fazia meu primeiro estágio obrigatório de Letras, conheci uma aluna de 16 anos que cursava o 7° ano do fundamental. Ela não se enturmava com os colegas e não tinha a malícia que adolescentes da sua idade têm. Ela gostava de conversar comigo, me contando, na maior parte do tempo, sobre o trabalho da sua mãe e sua rotina com a escola. Ela passava

COMO LAVAR UM TRAVESSEIRO

  De tempos em tempos é preciso lavar os travesseiros. Você pode optar por comprar um novo a cada vez que o antigo ficar inutilizável, mas advirto que o novo acabará sujo mais dia menos dia. Quantos travesseiros sujos está disposte a acumular durante a vida? A melhor forma de lavagem é mergulhar todo o tecido na máquina já cheia de água, e segurar a espuma o mais fundo possível por um tempo, para que toda a extensão do sonho se mantenha molhada. Depois, é hora de bater com sabão, mas não aconselho muita espuma, pois deixa o toque áspero. E por favor, não use amaciante. Aquela máscara não serve de nada. Você poderá perceber que, assim que o travesseiro for centrifugado, será impossível secar tudo ao sol. Por isso, escolha uma parte para ser descosturada. Remova todo o recheio e o estenda ao vento. Se for um dia quente, você poderá recolher tudo em algumas horas. Se desconfiar que irá chover nos próximos dias, reserve um espaço para que seus sonhos abertos possam descansar.  Após devolve

O MURO CAIU SOBRE O BEIJINHO

  O muro caiu sobre o beijinho. Eu havia plantado na sombra porque sabia que seria delicado. No entanto, cresceu mais do que qualquer outro que eu já conheci. Seu caule, talvez, procurasse o sol. Ou se imaginava como árvore, se avizinhando ao redor. Soterraram minha flor rosa. A única que se deu. (como se planta uma flor? como se mata uma planta?) A pitangueira ficou. Uma vez encontrei deus comendo pitanga, mas eu não acredito em deus. Apesar do muro caído, a pitangueira ficou. Eu esperava que ela tivesse ido, não minha flor. Se não tivesse um ninho de pardais, eu teria de matar. Mas não posso matar pardais, já perdemos nossos filhos uma vez. (por que arrancam nossos galhos secos de nós? nossos troncos ocos? nossa pele que se solta?) É feio espiar pelo muro caído, o buraco do mundo, túnel de minhoquinhas. Não posso mais esperar pelo meu beijinho.

LIVROS QUE FALAM DE LIVROS QUE FALAM DE POLÍTICA

       Durante a leitura de Um apartamento em Urano: crônicas da travessia , de Paul B. Preciado, me deparei com um texto intitulado A revolução dos bichos. A crônica me veio com potência, e posso me arriscar a dizer que essa é uma das crônicas mais potentes do livro. E por ser assim, me fez analisar todo meu percurso histórico pessoal de construção de senso crítico.      Quando eu estava na 8ª série, hoje 9° ano do ensino fundamental, a professora de história pediu que a gente lesse A revolução dos bichos , de George Orwell, pois faria um estudo guiado sobre a obra. A biblioteca da escola não tinha exemplares para serem emprestados, por isso, a maioria dos alunos não conseguiu o livro. Ainda assim, a professora, improvisando, trabalhou com metade da narrativa. Eu era um dos poucos alunos que tinha o livro em mãos. No entanto, devido ao grande número de estudantes dentro de uma sala de aula — alunos, devo acrescentar, que estavam na pior fase da puberdade —, a professora não conseguiu

CARTA ABERTA ÀS PESSOAS QUE ME CONHECEM HÁ TEMPO

       Você não me conhece. Talvez nunca tenha me conhecido de fato. Eu sempre fui o que era mais adequado ser. Nunca eu. Desculpe, posso estar te enganando, eu já fui eu algumas vezes na vida, quando escrevia; você me lia? conseguia me ler? No meio dos outros, sempre fui um outro, estranho a mim mesme.      Comecei a procurar por mim há apenas alguns anos. Você percebia como eu me escondia? E eu me escondia tão bem que a minha busca por mim se tornou muito difícil. Onde eu estava? Em que canto, encolhide? Hoje vejo deslumbres, partes de mim que me assustam, que me fazem fugir. Vejo beleza nessas partes também, embora precise de mais partes pra me ajudar a ver.      Tenho descoberto muitos Ds habitando em mim, mas isso não é significativo pra você. Talvez você nem saiba que também tem outros nomes. Eu tenho dezenas, até onde conheci. Uma vez sonhei que um exército de Evelyns apáticas descia a rua; eu não me reconheci nelas, mas na minha vó que estava sentada na cozinha conversando comi

QUANDO ATRAVESSAMOS JANELAS

     Li um livro chamado Não aceite caramelos de estranhos ( No aceptes caramelos de extraños ). Embora “Árvore genealógica” e “Miopia” tenham sido meus contos preferidos, foram “Meio corpo para fora navegando pelas janelas” e “O incômodo de sermos anônimos” que mais me cutucaram. Seus temas coincidem: a solidão humana.      Algum filósofo já disse que a essência do ser humano é a solidão. Que mesmo compartilhando coisas em comum e criando laços, estamos fadados a viver com um subjetivo só nosso, que ninguém consegue alcançá-lo de fato, além de nós mesmos. (Ou será que estou me confundindo e isso é coisa da psicanálise?).      Ou talvez, eu poderia arriscar um: somos solitários dentro de uma cultura ocidental branca e capitalista.      Semana passada, fui na casa de cereais comprar a minha rotineira broa caseira. Quando a atendente me viu, soltou um suspiro: “pensei que tinha acontecido alguma coisa com você! já faz tempo que não passa por aqui!” Sim, fazia mais de um mês que não apare

CHÁ DE HORTELÃ

  Ao preparar o desjejum, escuto a canção desesperada da minha mãe-pássaro. Entro no jardim com os pés descalços para avistar o minúsculo piar na pitangueira.  Meus olhos tentam alcançar algum movimento, mas minha visão falha não é capaz de nada. Encontro um ninho pendendo de um galho morto.  Me agacho e começo a chamar por filhos assustados em meio à matéria orgânica, quando vejo dois ovinhos partidos.  Sinto tanto pela mãe-pássaro: tínhamos esperança de nos recuperar. Mesmo sem a ver, lhe conto que nossos filhos se quebraram. Ajeito o ninho em um galho vivo e coloco as cascas no centro dos gravetos, para que possamos olhar nosso luto de pé. Saio do jardim sem fazer ruídos.  Colho uma folha de hortelã. Limpo os pés. Aqueço a água e bebo meu chá longe do tempo.