SOBRE AMIZADES TÓXICAS E CICLOS QUE SE REPETEM


Eu nunca tive amigos.

Amigos de verdade, quero dizer.


Essa descoberta me deixou extremamente mal durante vários meses. Por semanas essa primeira frase me perseguiu de forma aterrorizante. Junto com amor e felicidade, a amizade se encaixou na minha não-lista de experiências humanas que todo mundo tem.


E entrei em choque.


O amor, bem, esse eu já sabia que não conhecia desde sempre. Meio que me acostumei com sua ausência (mas perceba que aqui eu falo do amor universal, não dos específicos). A felicidade já foi alvo de vários textos reflexivos e inclusive de alguns debates filosóficos: a conclusão que eu tinha, deixando todo mundo sem argumentos, é a de que a felicidade não existe de fato.


Então eu cheguei no conceito de amizade: eu não podia negar sua existência — porque via as pessoas se relacionarem dessa forma — e não podia me acostumar a viver sem ela — porque eu não conseguia, e não aceitava.


Mas o que eu podia fazer? (pergunta retórica). Na psicoterapia foram dados alguns possíveis motivos para essa ausência social. Alguns deles se justificavam em partes da minha vida, mas não todos. E eu entrei em uma busca interior desesperada para encontrar estes porquês. Como eu já disse, não aceitava.


Então eu li um livro. Dois livros, na verdade. E um dos temas fortemente presentes em ambos (na minha leitura) era a questão da amizade e do afeto entre pessoas. E por incrível que pareça, eu entendi aquele sentimento, eu já tinha sentido aquele afeto várias e várias vezes na vida; o que me levou a entender duas coisas muito importantes: eu sentia afeto pelos outros, ou seja, não era um psicopata e não tinha uma “falha” na minha química do cérebro; e dois, eu já senti afeto de amizade por alguém, o que não explica a minha primeira frase de nunca ter tido amigos.


Então por que eu não entendia o que era a amizade?


Eu entendi que sim, eu já tive amigos, que sim, pessoas já sentiram afeto por mim. O problema é que isso não era entendido pelo meu consciente porque: um: passei por vários quadros depressivos durante a vida (e se você sabe o que é isso, também sabe que a nossa percepção do mundo se fecha num pequeno círculo do horror), e o mais importante: dois: eu vivia no que pode ser chamado de “amizades abusivas”.


A base é a mesma de um relacionamento romântico abusivo: humilhação indireta ou direta, desprezo, indiferença, necessidade de fazer o outro se sentir inferior e manipulação para que a pessoa sinta que não pode viver sem isso tudo porque não vale muita coisa.


Eu alimentei, por quase dez anos, amizades abusivas. E não foi só com uma pessoa.


Por isso o não-entender do que é amizade. Por isso o sentimento de sempre estar abandonada. Por isso o prazer de estar/sair sozinha: a companhia era a pior. 


Eu levei essa angústia da falta de amigos em várias sessões de terapia e tudo o que eu sentia de volta da psicóloga era pena (não estou querendo dizer aqui que a terapia foi ruim, mas a certa altura, ela não funcionava mais pra mim com a mesma profissional). Em nenhum momento a psicóloga pode ver a violência emocional que eu estava sofrendo nesse quesito. Eu fui descobrir mais tarde, sozinha, por causa da leitura de dois livros.


Eu precisei olhar muito bem para o pote de ouro falso que estava à minha frente pra fazer as peças soltas da minha vida se encaixarem. Eu percebi que ansiava pela presença dessas pessoas porque nutria emoções muito fortes por elas, mas elas não sentiam o mesmo por mim. Eu achava normal ser machucada e justificava o comportamento deles: “ah, ele/ela está passando por um momento difícil e está descontando em mim, vai passar”, mas não passava. Demorou muito pra eu perceber que não riam comigo, que riam de mim. O mais clássico era quando eu precisava e tentava desabafar e me respondiam com ausência permanente, mudança bruta de assunto ou com “não me conte mais essas coisas”. E doía muito. 


E é claro que eu afastava as pessoas que me queriam bem, que me tratavam com carinho, porque não era interessante, não era o reflexo da minha criação.


A gente aprende um modo de viver e inconscientemente busca uma cópia. A gente busca reproduzir no exterior as agressões que nossos pais despejavam em cima de nossas mães, aceitando agredir ou aceitando apanhar. A gente busca pessoas que vão nos tratar com negligência, porque ninguém se importava em jogar nossos desenhos coloridos com mensagens de amor no lixo, então a gente cresce e se não despreza, acha normal ser desprezado. 


E é assim que a roda gira. Até você perceber. Até você olhar pra tudo o que você é e entender quem é. Aí você sai da roda, um pouco ou muito tonto, querendo chorar e vomitar, mas sai. E uma hora você enxerga o que tem além dela. E enxerga que existem várias outras rodas ao redor, e que a maioria de nós ainda está preso em uma.


Os livros que li foram Quinze Dias, de Vitor Martins e Vermelho, Branco e Sangue Azul, de Casey McQuiston.


Comentários

  1. Que texto maravilhoso! Muito agradeço pela sua disponibilidade de partilhar sentimentos tão profundos. Você tem nobreza, você tem luz própria. E há muitas pessoas que, por não poderem brilhar como você, buscam ofuscar sua luz e sua beleza. Fico feliz por saber que foi capaz de dar a volta por cima. Parabéns! E agradeço ao privilégio de ler você.

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